Estranha mania de permanecer

Yuna Vitória Santana da Silva
4 min readSep 16, 2021
Foto por Ingrid Cruz Gusmão

Reflito sempre em como as conquistas para nós, pessoas trans, quando chegam, chegam tarde, de modo a se perder no tempo aquele sabor marcante da vitória, parecendo por vezes uma mera reparação, lugar ou coisa que algo ou alguém nos tirou e que só agora resolveram devolver. Tenho 28 anos e ainda estou na metade da faculdade, mesmo tendo concluído o ensino médio aos 17, ainda no segundo ano, quando fiz o Enem e me certifiquei, pulando assim o famigerado terceirão. Certamente não fiquei parada por falta de competência ou vontade de estudar até, aos 22, iniciar a minha graduação em artes e, hoje, direito. Estava muito ocupada tentando me fazer existir, sem tempo para ler qualquer coisa que não fosse as história que queria contar sobre mim. E viver.

Penso diariamente nos privilégios de não estar nas estáticas de subemprego, de ter vencido os preconceitos em casa, na rua e, apesar dos desestímulos, ter aprendido a trilhar meus próprios (des)caminhos. De acessar as narrativas acadêmicas e, portanto, usufruir de ferramentas de comunicação e produção de saberes que muitas das minhas semelhantes ainda não acessam por barreiras estruturais, o que dificulta a disputa pela cidadania. Penso em como estou em todos esses lugares, do palco desses privilégios, e em como não me é autorizado sair da periferia, das margens, sob risco de ser vista como “o elemento que não pertence ao grupo”, tipo daquelas questões de lógica de processos seletivos que colocam entre as alternativas “a) computador, b) celular, c) impressora, d) leão”. Eu sou sempre o leão. Melhor, sou uma leoa faminta, que será reduzida ao cio longe de suas terras, donde é rainha. Que será considerada uma fera quando tiver que vociferar para encher a barriga. Que terá espingardas apontadas para si mesmo em seu território. Que vai caçar para garantir a refeição em seu lar ao invés de, como o macho de sua espécie, sentar e esperar a comida chegar temperada e bem servida.

Vejo em como, deste lugar, nesta selva cisgênera, ainda sou a piada quando preciso ir ao mercado ou a uma qualquer loja de departamento ou pedir uma informação na esquina ou… poxa, as esquinas! Como sou sempre vista nelas!

Em como se espantam quando começo a falar ou escrever e brota dessa quebra de expectativa a violência disfarçada de elogio: “Nossa, ela até que é inteligente! Viu como é bem articulada?” Nem parece trans, diriam se pudessem, mas não são capazes diante do grave retumbante de minha voz, já rouca e rasgada de gritar por direitos.

Escrevo tudo isso em uma foto bonita como essa do título, tirada entre meu exercício profissional, talvez em um dos melhores e mais turbulentos momentos de minha vida, para lembrar que cada conquista não significa apenas o “cheguei até aqui”, mas todo o caminho espinhoso até esse “agora” e o constante medo vertiginoso do “depois” e mesmo do “então”. Para rugir que não se trata apenas dos nossos esforços e, em matéria de transgeneridade, não há estabilidade. Tudo pode mudar a qualquer tempo. Posso não dar conta de permanecer naquelas aulas de professores transfóbicos, que lecionam autores transfóbicos para alunos transfóbicos que não quererão fazer o seminário em grupo comigo. Posso abandonar o curso e, com isso, o emprego, o plano de saúde, a dignidade básica minha e da minha família. Posso ser abandonada, outra vez, por minha família — e novamente pelas tantas que conseguir re-formar. Pode me faltar o dinheiro, a internet, o aluguel, recursos básicos para estudar e trabalhar na pandemia. Podem me cortar a luz, a água ou os cabelos enquanto vou ao bar. Eles podem. Vocês também.

Posso escapar de tudo isso e ter a vida interrompida pela intolerância conservadora antes de colar grau, de tomar posse daquele cargo importante pelo qual batalhei a vida inteira ou de inaugurar meu próprio escritório, de ver meu filho se formar, meu marido envelhecer, minha mãe descansar feliz. Posso não dar conta de administrar tudo isso com a luta contra a transfobia e ter que escolher entre resistir ou negociar minha agência para não sucumbir de vez. Mas posso também seguir contrariando as estatísticas, as expectativas e os destinos, contrariando a pretensa biologia, os supostos deuses e os homens que se acham acima de tudo que existe e que não existe. Também posso todas essas coisas… mas no momento não consigo, ainda, sentir que qualquer ganho é digno de festa.

Eu choro quando perco e choro mais quando ganho, porque poderia ter ganhado muito antes. Me entristecem as vitórias e as derrotas. Esse mal social me tira qualquer vontade de soltar confetes coloridos sob o rubro de tanto sangue e suor.

A transfobia, afinal, segue adiando sucessos e antecipando fracassos.

As alegrias e euforias são os intervalos.

E entre esses lapsos temporais cisnormativos, por acaso, ainda sustento a estranha mania de parar os ponteiros, de permanecer sem hora…

de permanecer senhora…

De permanecer.

Foto por Ingrid Cruz Gusmão

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Yuna Vitória Santana da Silva

Estudante de Direito — UFBA, deficiente visual, pesquisadora em gênero - NUCUS, estagiária de Direito, cantora, poetisa, filha de Lene e mãe de Dionísio.